O direito de preferência do arrendatário urbano para fim habitacional consagrado no nº 8 do artigo 1.091º do Código Civil – a declaração de inconstitucionalidade – Breves notas sobre o Acórdão nº 299/2020, de 16 de Junho

Artigo publicado na Newsletter oficial do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados – n.º 5, julho de 2020
Pese embora o procedimento legislativo que conduziu à produção da Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, tenha encerrado momentos diversos de avanço e recuo, o que é facto é que, com a respectiva aprovação e promulgação, foi dada à estampa a nova redacção do artigo 1.091º do Código Civil, introduzida com o anunciado propósito de garantir “o exercício efectivo do direito de preferência pelos arrendatários na alienação do locado.”
Uma tal solução legal decorre – como todas, aliás – de uma opção política. Esta, como qualquer outra, evidencia sinais e marcas próprios do quadro circunstancial em que se insere, sendo, contudo, indesmentível, que a amplitude com que se projecta todo o feixe de soluções legais recentemente introduzidas na disciplina do arrendamento urbano tem vindo a criar perplexidade e a suscitar múltiplas interrogações em matéria de constitucionalidade.
Assim sucedeu com a referida Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, mais concretamente quanto às normas contidas nos novos números 8 e 9 do artigo 1.091º do Código Civil, instituidoras de um regime especial de preferência no contrato de arrendamento para fim habitacional, relativo a parte de prédio não submetido ao regime da propriedade horizontal.
É, deste modo, em consequência do pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade da norma constante no aludido nº 8 do artigo 1.091º do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, que é prolatado o Acórdão nº 299/2020, de 16 de Junho, e por ele declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade daquela norma, por violação do nº 1 do artigo 62º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.
Em matéria de arrendamento urbano, o direito de preferência emerge como medida restritiva da liberdade contratual concretamente destinada a proteger o arrendatário da precaridade própria de um tipo de contrato em que o gozo da coisa se assume como temporário – art. 1.022º do Código Civil –; justificada, quando se trata de arrendamento habitacional, pelo interesse público de favorecer o direito à habitação, enquanto direito social reconhecido e com assento constitucional.
Medidas legais de restrição que visem constituir-se como mecanismos de concretização da predita finalidade constitucional não podem, contudo, sacrificar, de forma ilimitada, o direito de propriedade, na medida em que tais hipóteses só devem ser admitidas com estrita observância do princípio da proporcionalidade. Dito de outro modo, é a própria salvaguarda do Estado de Direito que exige o accionamento do crivo fiscalizador da (in)constitucionalidade, de cujo trespassar de malha resultou, no presente caso, o aresto relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro e a que foi oposto o estímulo da dissidência veiculada por 4 votos de vencido.
Ali, para além do recenseamento das sucessivas soluções legais perfilhadas pelo legislador ao longo da história do ordenamento jurídico nacional – cujo contributo em muito concorre para clarificar as razões fundantes do esquema protector do direito legal de preferência aqui em causa – são tratados, de forma ímpar, o direito de preferência, o direito de propriedade, o instituto da compropriedade e bem assim as restrições impostas a cada um daqueles por força do reconhecimento e consagração deste último; para logo após se passar à enunciação do fim primordial em vista: a formulação de resposta à questão de saber se a norma contida no nº 8 do artigo 1.091º do Código Civil constitui medida legislativa inadequada, indispensável ou desrazoável.
E de que norma se trata, afinal?
O texto que a materializa estabelece que no caso de contrato de arrendamento para fim habitacional relativo a parte de prédio não subordinado ao regime da propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência em termos idênticos ao arrendatário de fracção autónoma, subordinado à dupla condição de i) o direito ser relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; ii) a aquisição pelo preferente ser efectuada com afectação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.
Uma tal norma aplica-se aos arrendamentos parciais para fim habitacional, ou seja, aqueles em que a parte tomada de arrendamento e que se encontra exclusivamente afecta à habitação do arrendatário não se encontra juridicamente autonomizada.
Será, pois, de concluir que, dada a estabelecida identidade dos tipos de preferência – a do arrendatário de fracção autónoma do prédio constituído em propriedade horizontal e a do arrendatário de parte do prédio indiviso – o conteúdo é o mesmo?
Não é, efectivamente, assim.
Seguindo de perto os argumentos desenhados no Acórdão que nos ocupa, dir-se-á, desde logo, que o denominador comum dos dois direitos de preferência é o tipo de contrato abrangido, o requisito temporal da relação de preferência e a individualização física dos prédios objecto do contrato; enquanto as diferenças que os distinguem e cuja excepcional relevância se assinala, recaem, por um lado, sobre o objecto da preferência e, por outro, sobre o direito a adquirir pelo arrendatário que exerce essa dita preferência. Com efeito, enquanto o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado que constitua fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal incide sobre a totalidade do imóvel; na hipótese de a venda ou a dação recair sobre prédio que não se encontre subordinado a tal regime, o objecto do exercício do direito de preferência – e consequentemente da venda – é, tão somente, uma quota parte alíquota do imóvel.
Ora, a ser assim – como é, efectivamente – opera-se a conversão legal do objecto da preferência, constituindo-se uma situação de compropriedade cujas características não só não asseguram a imediata propriedade plena do locado – pois que apenas atribuem ao arrendatário a assunção da qualidade de comproprietário do imóvel em que este se mostra incorporado – como põem em causa o próprio requisito da paridade de condições, qual elemento essencial da prioridade consagrada pelo direito de preferência.
Na verdade, a preferência consagrada na norma em análise é conceptualmente paradoxal, pois que a prioridade nela estabelecida denega a paridade de condições que a própria exige.
Afigura-se indiscutível que, uma vez que o prédio em que se integra o locado não se encontra constituído em propriedade horizontal, este não pode ser alienado autonomamente, e não o podendo – uma vez que o objecto da venda só pode ser ou o prédio todo ou a parte alíquota da propriedade daquele – o exercício da preferência não poderia nunca assumir outro modelo que não fosse o de arrendatário aceder à propriedade ou na sua totalidade ou na quota ideal daquela, desta feita em paridade de condições com o estabelecido no projecto de venda a terceiro.
Todavia, o direito de preferência consagrado na norma em análise não se refere a dois direitos opostos ou inconciliáveis cujo exercício, em paridade de condições, tem por objecto uma única e a mesma coisa; estabelece, outrossim, uma prioridade entre dois direitos diferentes, cujo exercício se faz em condições totalmente diferenciadas.
Acresce a circunstância de o direito de compropriedade conferido pela norma do nº 8 do artigo 1.091º não se enquadrar na disciplina de tal instituto- desta feita a plasmada sob os artigos 1.403º a 1.413º do Código Civil. Ao invés do previsto neste regime, a solução ali consagrada estabelece a divisão material do gozo da coisa comum, sem acordo dos restantes comproprietários, com afectação de uma concreta parte da coisa comum ao uso exclusivo do preferente e consequente privação dos demais consortes da idêntica fruição e gozo a que têm direito, e com a decorrente extinção da relação locatícia. Ora, uma tal solução não se acomoda na disciplina da compropriedade porquanto, se é certo que o comproprietário pode usar a coisa comum, também o é a impossibilidade de privar os demais consortes de um direito de idêntica natureza.
Porque como se sublinhou anteriormente, o direito de preferência assim exercido impõe uma forte limitação ao direito de livre disposição da propriedade privada, importa, então, aferir se uma tal limitação ofende os poderes e faculdades constitucionalmente reputados como intangíveis.
A possibilidade de transmissão materializa o exercício do direito de propriedade e constitui-se como manifestação de liberdade contratual. A ocorrerem quaisquer restrições à dita transmissão, deverão circunscrever-se a meras decorrências do tipo e da natureza do direito a transmitir, e já não, em circunstância alguma, como limitação da autonomia privada do proprietário.
Tal como se salienta no aresto que vimos estudando, as limitações e restrições à faculdade de disposição da propriedade, desde as que afectam a liberdade de contratar até às que respeitam à liberdade de estipulação do contrato, devem salvaguardar uma área de autodeterminação dos proprietários no trato privado.
Ora, sendo inquestionável que o direito de preferência estabelecido em benefício do arrendatário se impõe como um limite ao direito de propriedade do senhorio – na medida em que não só limita a liberdade de escolha da parte contratante (estabelece uma obrigação de possibilitar ao arrendatário aceder à transmissão onerosa), como impõe a obrigação de contratar (mostra-se vedada ao senhorio a possibilidade de desistir do negócio após ser exercido o direito à preferência) –, importa salientar que, no que tange à norma do nº 8 do artigo 1.091º do Código Civil, as limitações estabelecidas não se esgotam naquelas, importando, pois, avaliar se a limitação imposta é desproporcional e, por força dessa desproporção, violadora do disposto no artigo 62º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.
Como se infere de imediato, é a declaração de inconstitucionalidade da norma que assim o dita.
Vejamos, então, porquê.
Calcorreando o argumentário expendido no douto aresto sob análise emerge, desde logo, o recenseamento de um leque adicional de consequências fortemente limitativas da liberdade do proprietário senhorio vender ou dar em cumprimento o prédio parcialmente arrendado, desta feita traduzida no duplo sentido de não só não poder a vender a totalidade do mesmo, como a de ficar obrigado a dele vender uma quota-ideal.
O reconhecimento de um tal direito de preferência não só impede o senhorio de transmitir a totalidade do prédio a terceiros interessados, como o obriga a transmitir a quota alíquota correspondente à permilagem do locado, por preço em cuja determinação não participa, suportando, ainda, a extinção do contrato de arrendamento que mantinha e a afectação exclusiva do uso da parte do prédio correspondente ao anterior locado ao exercente da preferência.
Ora, porque um tal conjunto de restrições ao direito de propriedade contende com a liberdade de actuação do proprietário senhorio e afronta o direito à autodisposição do proprietário, conclui-se pela existência de uma forte restrição ao direito de transmissão, no sentido restrito de direito de não ser impedido de transmitir o prédio.
Uma restrição ao direito constitucional da propriedade privada de que, contrariamente à essência do direito de preferência, podem resultar prejuízos relevantes para a esfera jurídica do proprietário. Desde logo, por ser previsível que o terceiro perca o interesse na compra do imóvel; mas também porque, desse desinteresse resultará a inevitável consequência de senhorio e arrendatário passarem a ser comproprietários de um imóvel entretanto desvalorizado, mercê da circunstância de a soma do valor da quota alíquota objecto da preferência com o da quota remanescente ficar manifestamente aquém do correspondente ao preço da venda da coisa plena inicialmente projectada. Também porque, de forma absolutamente incompreensível, não foi dispensada ao proprietário nenhuma especial protecção – designadamente de natureza análoga à aplicável à venda de coisa juntamente com outras – com vista a evitar o sacrifício, porventura irremediável, dos respectivos interesses.
Ainda porque, visando a aludida limitação à liberdade de transmissão da propriedade a promoção do direito à habitação consagrado no artigo 65º, nº 2, alínea c) e nº 3 da Constituição, a propriedade de habitação própria não se constitui como a única solução concretizadora daquele. E, finalmente, porque, como eloquentemente ensinam os insignes Constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007, página 837 “os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais colectividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios.”
Uma vez que é por força de uma relação arrendatícia que subsiste imutável para além da compra e venda do imóvel que nasce o direito de preferência plasmado no nº 8 do artigo 1.091º do Código Civil, outra conclusão não pode extrair-se que não seja a de que, em momento algum o direito à habitação deixa de beneficiar da protecção contratual que constitucionalmente se lhe mostra conferida. Dir-se-á, porém, que a existência de uma protecção que dimana da existência do contrato de arrendamento não pode constituir impedimento à concretização do direito à habitação, designadamente através da aquisição de habitação própria. É certo que assim é, mas as diferentes naturezas dos direitos em confronto – o já existente direito de propriedade do senhorio e o direito à aquisição da propriedade enquanto mera expectativa – demandam tutela distinta e ditam, consequentemente, uma resolução do conflito entre o direito de propriedade do senhorio e o direito à habitação do arrendatário em que as limitações que se admite sejam impostas por este àquele sejam apenas as que que se revelem com o meio idóneo, exigível e proporcional para alcançar as finalidades constitucionalmente legítimas da promoção da estabilidade na habitação e impedimento da especulação imobiliária.
Ora, não é o que sucede com o direito de preferência estabelecido no nº 8 do artigo 1.091º do Código Civil, sistematizando-se, nos seguintes termos, os fundamentos em que é alicerçada uma tal conclusão:
O exercício do direito de preferência não confere ao arrendatário o direito imediato à propriedade plena do locado, pois que, pese embora a atribuição do uso exclusivo do mesmo, aquele ingressa na posição de comproprietário e passa a depender da vontade dos demais consortes quanto à concretização da respectiva quota ou em matéria de disposição e oneração de uma qualquer parte do prédio. Aliás, aquela qualidade de comproprietário não basta para garantir a estabilidade na habitação pois que pode muito bem suceder não existirem condições para proceder à divisão material e jurídica da coisa comum; ou, existindo essas condições, não vir a parte afecta ao uso exclusivo do exercente da preferência a ser-lhe adjudicada.
Por outro lado, para assegurar ao arrendatário o direito a uma habitação própria, não se mostra indispensável fixar como objecto da preferência uma quota parte alíquota do prédio, desta feita correspondente à respectiva permilagem, pois que, como vimos, pode suceder que a impossibilidade de constituição da propriedade horizontal, venha a revelar a total ineficácia da solução e a quedar-se pela produção de prejuízos relevantes na esfera patrimonial do senhorio.
Por fim, porque a solução preconizada não assegura o equilíbrio dos interesses do proprietário e do senhorio: o proprietário que pretende alienar o prédio não vê respeitada a igualdade de condições convencionadas com um terceiro; sendo em detrimento do seu interesse que ocorre o exercício da preferência pelo arrendatário.
Tudo visto, porque o sacrifício imposto à livre transmissibilidade do prédio é excessivo e se revela insusceptível de assegurar a estabilidade habitacional, resultou, em boa hora, declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do nº 8 do artigo 1.091º do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, por violação do disposto no nº 1 do artigo 62º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa.
Nota da autora: o texto está escrito de acordo com o antigo acordo ortográfico.
Coimbra, 25 de Julho de 2020.