Arrendamento em tempo de pandemia


Artigo publicado na Newsletter oficial do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados – n.º 2, abril de 2020

Afirmar que o arrendamento urbano tem vindo a ser, ao longo dos últimos anos, uma das áreas do direito civil a sofrer maior número de alterações legais não será merecedor de reparo. Dizer que em tempos de dita normalidade a sucessiva introdução de regimes excepcionais corporizou um complexo sistema legal, impositivo de uma árdua tarefa de compatibilização normativa, também não surpreende.

E se é assim, não poderia deixar de o ser no tempo que agora vivemos – um tempo de excepção, que é, inevitavelmente, de suspensão…

 

Não consta dos compêndios da nossa história que, na vigência da actual Constituição (que data de 10 de Abril de 1976), houvesse registo de declaração do estado de emergência.

 

Foi por Decreto de 18 de Março último que, motivado pela necessidade de evitar a proliferação de casos de contágio de COVID-19 e de salvar vidas e com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, aquele foi declarado (artigo 1º do Decreto nº14-A/2020, de 18 de Março) e, após ele, estabelecidas as medidas tidas como adequadas e necessárias à respectiva execução.

 

Com especial incidência sobre matérias de circulação na via pública, de regulação de tarefas e funções essenciais à sobrevivência dos cidadãos, de fixação de regras de deslocação e de definição preferencial de modelos de prestação de trabalho, as normas de execução do estado de emergência não deixaram de tocar pontos nevrálgicos das relações que suportam a economia, como sejam as estabelecidas em matéria de arrendamento urbano.

 

Com efeito, as medidas excepcionais e temporárias instituídas como resposta às situações nascidas no seio de um quadro historicamente sem precedentes, revelam, desde logo, uma ideia de suspensão, enquanto mecanismo de protecção. Suspendem-se os processos e os procedimentos, suspendem-se os efeitos dos actos praticados no âmbito das relações locatícias vigentes, suspendem-se obrigações.

 

O primeiro manifesto de preocupação quanto às matérias do arrendamento urbano plasmou-o o legislador no Decreto 2-A/2020, de 20 de Março – o diploma que procedeu à execução da declaração do estado de emergência efectuada pelo Decreto do Presidente da República nº14-A/2020, de 18 de Março- quando no seu artigo 10º estabeleceu que o encerramento de instalações e estabelecimentos realizado ao abrigo de tal decreto não constitui fundamento de resolução, denúncia ou qualquer outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas de exploração de imóveis, nem, outrossim, fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados.

Transposta sem mácula para o Decreto nº 2-B/2020, de 2 de Abril e, subsequentemente, para o Decreto 2-C/2020, de 17 de Abril- diplomas que, regulamentando a prorrogação do estado de emergência, se revogaram sucessivamente – a norma agora vertida sob o artigo 12º, reflecte, inequivocamente, uma preocupação de defesa da estabilidade das relações constituídas em matéria de arrendamento urbano, ainda que com sacrifício do pontual cumprimento das obrigações contratuais a que as partes se mostrem vinculadas.

E surge, com toda a pertinência, num diploma em que, com vista a prevenir a transmissão do vírus causador da situação de emergência de saúde pública que originou a decretação do estado de emergência, se estabelecem especiais medidas de confinamento, recolhimento , e, para o que agora releva, encerramento de instalações e estabelecimentos e suspensão de actividades.

É, pois, num contexto de inusitado mas, ainda assim, incontornável adormecimento da vida em sociedade, que emerge como imprescindível um tal tipo de medidas de tamponamento às consequências daquelas impostas condutas.

 

Em sede adjectiva, a Lei nº1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela Lei nº4-A/2020, de 6 de Abril, determina, desde logo, sob o nº11 do seu artigo 7º que, até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS- CoV-2 e da doença COVID-19, , cujo termo final será declarado por decreto-lei, se encontram suspensas as acções de despejo – previstas no art. 1.084º, nº1 do Código Civil e artigo 14º do NRAU ( aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro)-; os procedimentos especiais de despejo -previstos nos artigos 15º e seguintes do NRAU e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada – previstos no art. 862º do Código do Processo Civil -,  quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.

Estabelece ainda, sob o seu artigo 8º, e agora em sede substantiva, que durante a vigência das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade de saúde pública e até 60 dias após a cessação de tais medidas ficam suspensos: i) a produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional, celebrados no regime da duração indeterminada realizadas pelo senhorio ( artigo1.101º do Código Civil); ii) a caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação (artigo 1.051º do Código Civil); iii) a produção de efeitos da revogação ( considera-se que o legislador quis dizer resolução), da oposição à renovação de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio ( artigos 1.083º e  1.097º do Código Civil); iv) o prazo de 6 meses em que o locado cujo arrendamento haja caducado deve ser entregue ao senhorio (artigo 1053.º do Código Civil), se o termo final de tal prazo ocorrer durante o período de tempo em que vigorem as referidas medidas.

 

A Lei nº 4-C/2020, de 6 de Abril, com entrada em vigor no dia seguinte ao da publicação, institui, por seu turno, um regime excepcional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos contratos de arrendamento urbano e aplica-se às rendas que se vençam a partir de 1 de Abril de 2020.

Independentemente do fim convencionado – habitacional ou não habitacional (e por equiparação a este, todas as outras formas contratuais de exploração de imóveis para fins comerciais) – as relações de arrendamento mereceram – ainda que com disciplinas distintas – uma especial protecção, tão mais vigorosa quanto o bem jurídico e/ou a parte contratual a proteger.

 

No domínio do arrendamento para fim habitacional – sector de especialíssima relevância social – cuidou-se, por um lado (e este em exclusivo benefício dos arrendatários), de assegurar o afastamento do regime da mora previsto no artigo 1.041º do Código Civil e, simultaneamente, de fixar um regime de diferimento e fraccionamento do pagamento das rendas vencidas no período de vigência do estado de emergência e no mês imediatamente subsequente à sua cessação; e, por outro ( agora já em benefício quer dos senhorios, quer dos arrendatários), de atribuir apoio financeiro a quem demonstre dele carecer, desta feita por via da concessão de financiamentos em condições excepcionais.

No domínio do arrendamento não habitacional as medidas foram mais contidas – porventura em consequência da existência de outros mecanismos de protecção e financiamento das entidades mais directamente atingidas pelas medidas de encerramento de estabelecimentos e de suspensão de actividades – restringindo-se, desta feita, aos mencionados afastamento do regime da mora e possibilidade de diferimento e fraccionamento do pagamento das rendas vencidas no mencionado período de referência.

 

Assim, aos arrendatários habitacionais cujos rendimentos do respectivo agregado familiar tenham sofrido uma quebra superior a 20% face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano anterior ( alínea a) do nº1 do artigo 3º), e que, com vista a realizar o pagamento da renda devida, suportem sobre o indicado rendimento um esforço igual ou superior a 35% ( alínea b) do nº1 do artigo 3º), é concedida a possibilidade de diferirem o pagamento das rendas vencidas   no denominado período de referência ( período de vigência do estado de emergência e no mês imediatamente subsequente à sua cessação ) para os 12 meses seguintes ao termo deste, em prestações mensais de valor não inferior a 1/12 do montante total em dívida, pagas conjuntamente com a renda de cada mês ( artigo 4º).

Por outro lado, aos arrendatários que se encontrem na predita situação e que se  mostrem incapazes de pagar as rendas vencidas no âmbito de arrendamento que respeite à sua residência permanente, confere-se a possibilidade de recurso a um empréstimo, sem juros – a conceder pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP.- para suportar a diferença entre o valor da renda mensal e o valor resultante da aplicação ao rendimento do seu agregado familiar de uma taxa de esforço máxima de 35%, salvaguardado que seja um rendimento disponível restante não inferior ao valor do Indexante dos Apoios Sociais (IAS) fixado para o ano de 2020 – a saber, 438,81 €, conforme fixado pela Portaria nº 27/2020, de 31 de Janeiro ( artigo 5º da Lei 4-C/2020, de 6 de Abril e artigo 2º, nº1, al. a) da Portaria 91/2020, de 14 de Abril).

Idêntica solução de financiamento é aplicável aos arrendatários estudantes que, com vista à frequência de estabelecimento de ensino, hajam celebrado contrato de arrendamento para habitação situada a uma distância superior a 50 km da residência permanente do seu agregado familiar e bem assim aos fiadores dos arrendatários estudantes que não aufiram rendimentos do trabalho ( artigo 5º da Lei nº 4-C/2020, de 6 de Abril e artigo 2º, nº1, alíneas b) e c) da Portaria 91/2020, de 14 de Abril).

Já no que respeita aos senhorios, a concessão de tal financiamento só se mostra possível se o arrendatário não tiver acedido a tal tipo apoio, e é válido apenas para as situações de quebra de rendimentos do agregado familiar superior a 20% face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano anterior, registada em consequência da falta de pagamento de rendas e em que o rendimento disponível restante do agregado se cifre em valor inferior ao IAS ( artigo 3º, nº 1, alíneas c) e d); artigo 5º, nº3, ambos da Lei nº 4-C/2020, de 6 de Abril e artigo 2º, nº1, al. d) da Portaria 91/2020, de 14 de Abril).

 

No que respeita ao arrendamento não habitacional, e tal como se disse já, a medida estabelecida consiste na possibilidade de diferimento e fraccionamento do pagamento das rendas vencidas no denominado período de referência, nos mesmos moldes estabelecidos para o arrendamento habitacional, no âmbito de contratos relativos a: i) estabelecimentos abertos ao público destinados a atividades de comércio a retalho e de prestação de serviços encerrados ou que tenham as respetivas atividades suspensas ao abrigo do Decreto nº2-A/2020, de 20 de março, (leia-se agora Decreto nº 2-C/2020, de 17 de Abril ) ou por determinação legislativa ou administrativa, nos termos previstos no Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, ou ao abrigo da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei 95/2019, de 4 de setembro, ou de outras disposições destinadas à execução do estado de emergência, incluindo nos casos em que estes mantenham a prestação de atividades de comércio eletrónico, ou de prestação de serviços à distância ou através de plataforma eletrónica; ii) estabelecimentos de restauração e similares, incluindo nos casos em que estes mantenham atividade para efeitos exclusivos de confeção destinada a consumo fora do estabelecimento ou entrega no domicílio, nos termos previstos no Decreto nº2-A/2020, de 20 de Março (leia-se Decreto nº 2-C/2020, de 17 de Abril) ou em qualquer outra disposição que o permita.

Uma nota se impõe a propósito do diferimento e fraccionamento do pagamento de rendas para sublinhar a necessidade de comunicação ao senhorio da correspondente intenção – até cinco dias antes da data de vencimento da primeira renda em que o arrendatário pretenda beneficiar de tal regime, salvo quanto à que se tenha vencido em 1 de Abril de 2020, cuja comunicação deverá ocorrer até 27 desse mês -, comunicação devida quer no arrendamento para fim habitacional, quer no arrendamento para fim não habitacional ( artigo 6º). Igualmente comum aos dois fins de contratação, a disciplina referente ao vencimento e exigibilidade de todas as quantias devidas por força dos aludidos diferimentos, as quais ocorrerão se e logo que o contrato a que respeitem cesse por iniciativa do arrendatário (artigo 12º).

Por último, uma referência à possibilidade de estabelecimento pelas Entidades Públicas de um regime excepcional adicional a qualquer dos indicados (art.11º).

 

A regulamentação dos termos em que é feita a demonstração da quebra de rendimentos para efeitos do regime excepcional encontra assento na Portaria 91/2020, de 14 de Abril, designadamente quanto ao âmbito de aplicação (artigo 2º), ao critério de demonstração ( artigo 4º), aos rendimentos elegíveis (artigo 5º) e respectiva prova (artigos 6º e 7º) e bem assim ao meio comunicacional preferencialmente usado quer nas comunicações trocadas entre arrendatários e senhorios, quer nas remetidas para o IHRU, IP., estas no âmbito dos procedimentos de concessão de apoio financeiro (artigo 8º).

Note-se, porém, que a norma contida no predito artigo 8º da Portaria 91/2020, de 14 de Abril, não constitui uma derrogação da disciplina comunicacional prevista nos artigos 9º e seguintes do NRAU- em que a carta registada com aviso de recepção materializa a forma comunicacional do regime regra -, pois que, o que ali se estabelece é tão somente o privilegiamento do correio electrónico.

Aliás, é altamente provável existirem situações em que a comunicação por esta forma se mostra inviável, sendo certo que, aos que, por uma ou outra razão, opunham o argumento da inexequibilidade prática ao regime dos mencionados artigos 9º e 10º do NRAU – dadas as contingências relativas à assinatura de correio registado e dos avisos de recepção – , veio a Lei nº 10/2020, de 18 de Abril, dar resposta no sentido de a recolha da assinatura ser substituída pela identificação verbal e recolha do número do cartão de cidadão, ou de qualquer outro meio idóneo de identificação, mediante apresentação e aposição da data em que a recolha foi efectuada (artigo 2º).

Para além do que aqui se deixou tratado, muito ficou por dizer mas estamos certos de, em breve, haverá oportunidade de voltar ao arrendamento urbano e à análise das questões que se suscitam no respectivo âmbito, cuja diversidade torna o tema inesgotável.

 

 

 

Coimbra, 18 de Abril de 2020.

(Nota: a autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)